ARTIGO: Síndrome de Tourette: Aspectos Psicossociais relacionados ao sofrimento persistente nas famílias que convivem com a doença

Sarah Karenina

INTRODUÇÃO

A Síndrome de Gilles de La Tourette é um Transtorno Neuropsiquiátrico, que contém características psicomotoras múltiplas de tiques verbais e motores. Essas características que são bastante evidentes acarretam grandes prejuízos biopsicossociais em toda a família.

Devido a Síndrome, ainda hoje, não ser tão difundida existe a dificuldade de diagnóstico o que leva a família e a criança ao sofrimento persistente na procura constante por médicos e pelo tratamento. Esse diagnóstico pode muitas vezes ser confundido com outras síndromes, devido a falta de conhecimento dos profissionais, com diagnóstico errôneos como, por exemplo, a Coréia de Sydenham, o que prolonga mais ainda o início do tratamento.

Anteriormente ao diagnóstico, as consequências dos sintomas da Síndrome de Tourette (ST) já são vividas pela família. Inicialmente o diagnóstico causa um impacto na família, juntamente com o sentimento de ambivalência de alívio e desespero. O alívio surge por saber que a doença não causa morte e o desespero por saber que trata-se de uma síndrome  incurável, e a partir desse momento terão que conviver com uma nova “companheira” na família: A Síndrome De Tourette.

A partir da disseminação dos sintomas da Síndrome de Tourette, a família precisará se adaptar à presença constante dos tiques, e precisará também, socializar a criança nos mais diversos âmbitos: escolar, familiar e comunitário, buscando diminuir o impacto do estigma que a síndrome acarreta.

Este trabalho busca explanar o papel da família como grupo social primário, bem como as consequências acarretadas neste grupo pela presença de um integrante que possui a Síndrome de Tourette. Esclareceremos também algumas atribuições desta Síndrome, como sintomas, diagnóstico e tratamento.

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A infinidade de amores na dor de existir

Paradoxo do amor: o que falta ao amante é justamente o que o amado não tem

O discurso psicanalítico, ao investigar os fundamentos do amor, apresenta, de forma sistematizada, o que os poetas já sabiam: o encontro da verdade com o saber não decifra toda a verdade.

O desejo de saber o que o amor é esbarra com algo indizível. Assim, o que não pode ser dito e escrito converte o amor em “um mal, que mata e não se vê”, em “um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como, e dói não sei por quê” (Camões). Amar e saber o que é amar são coisas diferentes. Amar é um acontecimento que nunca se esquece; é inventar sentidos para a existência no mundo. Saber o que é amar é impossível, porque “quem ama nunca sabe o que ama; nem sabe por que ama, nem o que é amar” (Fernando Pessoa).

Diante da impossibilidade de saber toda a verdade, fala-se de amor. Isso é o que vem sendo feito há séculos. Platão, em O Banquete, retrata os lugares do discurso: o do amante e o do amado. Jacques Lacan (1901-1981) baseia-se no amor grego para articular o par amante-amado com a estrutura do amor. Aquele que experimenta a sensação de que alguma coisa lhe falta, mesmo não sabendo o que é, ocupa o lugar de sujeito do desejo (amante); aquele que sente que tem alguma coisa, mesmo não sabendo o que é, ocupa o lugar de objeto (amado). O paradoxo do amor reside justamente no fato de que o que falta ao amante é precisamente o que o amado não tem. Se Eros nasce de uma aspiração impossível, que é de dois fazer um, o ser humano inventa o mito do amor, sustentado na promessa de felicidade. E, enquanto isso não vem, o bem se transforma em mal, inaugurando uma escola de amor infeliz.

Freud e a teoria da sexualidade humana
Em O Mal-estar na Civilização, Sigmund Freud (1856-1939) adota a versão do amor que se encontra no poema “Sobre a Natureza”, do filósofo grego Empédocles (490-430 a.C.): Eros é uma força que tende para a unificação. Em As Pulsões e Suas Vicissitudes (traduzido em português por Os Instintos e Suas Vicissitudes), Freud cria o conceito de pulsão para construir uma teoria da sexualidade humana: as pulsões são os representantes psíquicos de estímulos internos, situando-se no limite entre o psíquico e o somático, e apresentam-se divididas em pulsões sexuais e pulsões do eu (pulsões de autoconservação).

As pulsões sexuais (oral, anal e genital), constituídas por quatro elementos (impulso, fonte, alvo e objeto), passam por quatro processos de transformação: reversão a seu oposto, retorno em direção ao próprio eu, recalque e sublimação. A reversão a seu oposto caracteriza-se pela transformação do amor em ódio. Essa metamorfose se refere a um tempo arcaico, regido pelo autoerotismo (narcisismo primário), o qual é dividido em duas fases. Na primeira fase, as pulsões do eu e as pulsões sexuais têm o mesmo alvo, porque ainda não se separaram: é a satisfação autoerótica. Sob o domínio do princípio de prazer, constitui-se um eu primitivo, interessado pelo que lhe dá prazer e desinteressado do que lhe dá desprazer. Essa indiferença, nomeada de “repúdio primordial do eu narcísico”, inaugura o ódio.

Na segunda fase, o eu da realidade, transformado em eu do prazer purificado, realiza a distinção entre o fora e o dentro pela via da fantasia: o que causava desprazer e era odiado é expulso do próprio corpo, passando a constituir, então, o campo dos objetos; o que causava prazer passa a ser amado e, como tal, incorporado ao próprio corpo (eu do prazer). É importante ressaltar que a precedência do ódio sobre o amor está diretamente ligada às suas fontes: o ódio nasce sob o domínio do princípio de prazer e o amor inaugura-se no momento em que se constitui a pulsão. Do acoplamento do amor ao ódio resulta a marca primordial do amor, a ambivalência (amor/ódio).

Em Sobre o Narcisismo: uma Introdução, Freud aborda o amor a partir da escolha de objeto. Todo ser humano tem dois objetos sexuais: ele mesmo e aqueles que desempenham as funções de alimentação e de proteção. Em função disso, temos duas escolhas: narcísica e anaclítica. Na escolha narcísica, ama-se o que se é, o que se foi ou o que se gostaria de ser. Aqui, o objeto é amado com a mesma intensidade que outrora o eu do prazer fora amado no autoerotismo. Na escolha anaclítica, ama-se a parte do eu que foi renunciada e transferida para o objeto, fazendo com que o objeto seja revestido das funções materna e paterna: a mulher que alimenta ou o homem que protege.

Freud retoma, em Psicologia de Grupo e Análise do Ego, a escolha do objeto amado pelos mecanismos de idealização e de identificação. A idealização caracteriza-se pelo engrandecimento do objeto e a identificação pela forma mais arcaica de laços afetivos com o objeto. Na idealização, o intenso investimento do eu no objeto implica não só o empobrecimento desse eu, mas também a sua ligação com o objeto, mesmo depois da perda ou do abandono.

A separação é vivida como dilaceração, fazendo com que o eu experimente a dolorosa sensação de que uma parte de si mesmo foi arrancada para sempre. Por sua vez, na identificação, a perda ou o abandono do objeto conduz à incorporação de suas propriedades pelo eu. Assim, na idealização, o objeto é colocado no lugar do ideal do eu, e, na identificação, o objeto é colocado no lugar do eu. Na idealização, ingressamos no reino da paixão, onde o amante, encantado pelo objeto amado, é levado à servidão sem limite. Na cegueira da paixão, o enamorado pode inclusive ser arrastado ao impulso do crime. A perda do objeto da paixão converte o amor em ódio, fazendo com que o desejo de posse se transforme em desejo de destruição.

Lacan e o amor como paixão e dom ativo
Lacan, em seu projeto de retorno à obra de Freud, faz questão de enfatizar que é preciso distinguir entre o amor como sentimento da paixão e o amor como dom ativo. O amor como paixão inscreve-se no plano das relações imaginárias, nível das relações especulares, em que as imagens do eu e do outro se confundem. O amor como dom ativo inscreve-se no plano das relações simbólicas, dimensão da palavra, cujo registro é o da verdade, da mentira, da equivocação e do erro. A paixão visa ao outro como objeto e o amor visa ao outro como sujeito.

Na paixão, exigem-se provas de amor. Mesmo que as provas sejam dadas, nunca o apaixonado se dá por satisfeito, porque não se trata de ser amado, mas, sim, de querer ser amado do modo pelo qual se imagina que se deva ser amado. Qualquer particularidade do outro amado tem de ser apagada para que se mantenha a fantasia de que de dois se faz um. Lágrimas são derramadas pelo que deveria ter sido e não foi. O fracasso de um sonho torna-se a causa do sofrimento de amor, o qual se transforma em ódio de si mesmo e do outro. Na paixão, amar é querer enviscar-se no objeto, capturando-o; odiar é querer desvencilhar-se do objeto, aviltando-o. Lacan afirma inclusive que “o ódio não se satisfaz com o desaparecimento do adversário”.

Não basta o exílio, a prisão, o assassinato; é preciso a injúria para denegrir o ser do outro odiado. Se não se pode eliminar a existência do outro odiado na linguagem, o caminho da difamação é a via pela qual se tenta associar um nome à indignidade e à vilania. Um terceiro elemento é acrescentado ao par amor-ódio: a ignorância. O desejo de não querer saber está para a paixão assim como o desejo de querer saber está para o amor. O amor como dom ativo está para além da fascinação imaginária, porque se dirige ao ser do outro em sua particularidade. Trata-se de um amor que se inscreve no regime da diferença, onde dois não fazem um, mas dois.

No Seminário 4: a Relação de Objeto, Lacan aborda outra modalidade do amor, aquele concebido como recusa do dom e situado em torno do que o objeto amado não tem. Três elementos entram em cena: amante, objeto amado e para além do objeto. O que se ama está para além do objeto. E o que estaria nesse além senão a própria falta? Justamente por isso, Lacan diz que o dom dado em troca não é nada: “o nada por nada é o princípio da troca”. Na dialética da recusa do dom, o sujeito sacrifica-se para além daquilo que tem. Então, amar é dar o que não se tem, e o acento está no amor, não no objeto amado. Esse acento comparece no amor cortês (o trovadorismo dos séculos 12 e 13), na concepção barroca de amor, em Fernando Pessoa etc. O que se ama é o próprio amor.

Lacan introduz, ainda, no Seminário 11, o conceito de sujeito-suposto-saber (SsS) no amor de transferência: “Desde que haja em algum lugar o sujeito-suposto-saber, há transferência”. A introdução de um sujeito-suposto-saber no amor de transferência não modifica a sua estrutura, que é a mesma da paixão. Por isso, ao amar alguém, suponho um saber; ao odiar a alguém, suponho um não saber (o saber que está em jogo é um saber sobre o desejo).

Há uma infinidade de amores. Mesmo assim, o amor não é a panaceia para a dor de existir, inclusive porque, como nos ensina um poema do século 16 atribuído a Camões (“Amor É Fogo que Arde sem Se Ver”), como se pode esperar paz, harmonia e felicidade nos corações humanos, “se tão contrário a si é o mesmo amor”?

Fonte: Revista Cult

Ser ou não ser

Revolução feminista, neoliberalismo e globalização deslocaram o lugar do jovem na sociedade atual

Joel Birman

Na atualidade, a imagem da juventude está marcada ao mesmo tempo pela ambiguidade e pela incerteza. Digo ambiguidade pois se, de um lado, a juventude é sempre exaltada na contemporaneidade, cantada que é em prosa e verso pelas potencialidades existenciais que condensaria, por outro a condição jovem caracteriza-se por sua posição de suspensão no espaço social, que se materializa pela ausência de seu reconhecimento social e simbólico.

Seria em decorrência disso que a incerteza é o que se delineia efetivamente como o futuro real para os jovens, em todos os quadrantes do mundo.

Como se pode articular essas diferentes versões da juventude na contemporaneidade, numa narrativa que seja coerente e consistente?

É preciso destacar, antes de tudo, que a possibilidade de experimentação foi o que passou a caracterizar a condição da adolescência no Ocidente, desde o final do século 18, quando as idades da vida foram construídas em conjunção com a família nuclear burguesa, em decorrência da emergência histórica da biopolítica.

Nesse contexto, a adolescência foi delimitada como o tempo de passagem entre a infância e a idade adulta, na qual o jovem podia empreender experiências nos registros do amor e das escolhas profissionais, até que pudesse se inserir no mercado de trabalho e se casar, para reproduzir efetivamente as linhas de força da família nuclear burguesa.

Os romances de formação (Bildung), na tradição literária alemã, descreveram com fartura as sagas dos jovens na abertura da modernidade. Dentre eles é preciso evocar Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister (Editora 34), de Goethe, que delineou com detalhes requintados o perfil da construção moderna da adolescência, sendo até mesmo sua narrativa paradigmática.

Desde os anos 1980, no entanto, essa figuração da adolescência entrou em franco processo de desconstrução, por diversas razões. Antes de mais nada, pela revolução feminista dos anos 1960 e 70, com a qual as mulheres foram em busca de outras formas sociais de existência, além da condição materna. Isso foi a condição de possibilidade concreta para a desmontagem da família nuclear burguesa.

Com efeito, as mulheres como mães eram as peças fundamentais para fazer funcionar esse modelo familiar, pela articulação que realizavam entre a gestão doméstica e as instituições médica e pedagógica, em nome do imperativo biopolítico, de produção da qualidade de vida da população.

Em seguida, porque o deslocamento das mulheres da posição exclusivamente materna foi o primeiro combate decisivo contra o patriarcado, que forjou nossa tradição desde a Antiguidade. Os posteriores movimentos gay e transexual vieram nos rastros do movimento feminista, inscrevendo-se nas linhas de fuga da crítica do patriarcado.

Com isso, a problemática da autoridade foi efetivamente colocada na berlinda, devendo ser remanejada desde então.

Finalmente, a construção do modelo neoliberal da economia internacional, em conjunção com seu processo de globalização, teve o poder de incidir preferencialmente em dois segmentos da população, no que tange ao mercado de trabalho. De fato, foram os jovens e os trabalhadores da faixa etária dos 50 anos os segmentos sociais mais afetados pela voragem neoliberal.

Com isso, se os primeiros passaram a se inserir mais tardiamente no dito mercado, os segundos passaram a ser descartados para ser substituídos por trabalhadores jovens e mais baratos, pela precariedade que foi então estabelecida no mercado de trabalho.

Foi em consequência desse processo que o tempo de duração da adolescência se alongou bastante, ficando então os jovens fora do espaço social formal e lançados perigosamente numa terra de ninguém.

Assim, graças à ausência de inserção no mercado de trabalho, a juventude foi destituída de reconhecimento social e simbólico, prolongando-se efetivamente, não tendo mais qualquer limite tangível para seu término.

Despossuídos que foram de qualquer reconhecimento social e simbólico, aos jovens restaram apenas o corpo e a força física. É por devidamente a emergência e a multiplicação das formas de violência entre os jovens na contemporaneidade.essa trilha que podemos interpretar devidamente a emergência e a multiplicação das formas de violência entre os jovens na contemporaneidade.

Esse processo ocorre não apenas no Brasil e na América Latina, mas também em escala internacional. Pode-se depreender aqui a constituição de uma cultura agonística na juventude de hoje.

Contudo, essa cultura de combate é apenas a face de uma problemática mais abrangente, na qual o verso é a presença aterrorizante do desamparo, que marca o campo da juventude na contemporaneidade, em que o medo do futuro e a insegurança do existir se perfilam efetivamente como espectros.

No entanto, é preciso evocar ainda que, se a violência e a delinquência sempre foram atribuídas às classes populares, construindo o ethos e o habitus delas em sua estratégia de sobrevivência, elas hoje também se fazem presentes nos segmentos jovens das classes médias e das elites.

Vale dizer que, em consequência das novas condições precárias do mercado de trabalho, regulado pelo ideário neoliberal, as classes médias e as elites passaram a se defrontar com os mesmos impasses, nos registros do reconhecimento social e simbólico, que marcaram outrora apenas as classes populares.

Assim, a violência juvenil transformou-se em delinquência, inserindo-se efetivamente no registro da criminalidade. No Brasil, os jovens de classe média e das elites passaram a atacar gratuitamente certos segmentos sociais com violência. De mulheres pobres confundidas com prostitutas até homossexuais, passando pelos mendigos, a violência disseminou-se nas grandes metrópoles do país.

Ao fazerem isso, no entanto, seus gestos delinquentes inscrevem-se numa lógica social precisa e rigorosa. Com efeito, tais segmentos sociais representam no imaginário desses jovens a decadência na hierarquia social, sendo pois os signos do que eles poderão ser efetivamente no futuro, na ausência do reconhecimento social e simbólico que os marca.

Ao lado disso, a cultura agonística manifesta-se ainda nos combates que se estabelecem entre jovens nas corridas noturnas de carros, assim como nas brigas frequentes que ocorrem nos bairros frequentados pela juventude nas grandes cidades. Foi ainda nesse contexto que se estabeleceu recentemente na tradição brasileira o assassinato de pais pelos filhos, demaneira inesperada e regular.

Finalmente, a cultura da força empreende-se regularmente em academias de ginástica, onde os jovens cultuam os músculos, não apenas para se preparar para os combates cotidianos da vida real, mas para forjar também um simulacro de força na ausência efetiva de potência, isto é, na ausência de reconhecimento social e simbólico, lançados que estão aqueles no desamparo.

É nesse registro que se deve inscrever a disseminação do bullying na contemporaneidade. É preciso dizer, no que concerne a isso, que a provocação e a violência entre os jovens e crianças é uma prática social antiga. O que é novo, contudo, é a ausência de uma autoridade que possa funcionar como mediação no combate entre estes e aqueles, o que incrementou bastante a disseminação dessa prática de violência.

Ao lado disso, é preciso dizer ainda que, pela luta e pelo combate agonístico com os colegas considerados mais frágeis, os valentões preparam- -se já para o futuro, para a selva do mundo neoliberal, restringindo desde cedo o campo da competição pelo estabelecimento da hierarquia entre os corpos, pela serialização da força existente entre eles.

Não obstante tudo isso, a juventude é ainda glorificada como a representação do que seria o melhor dos mundos possíveis. A juventude seria então a condensação simbólica de todas as potencialidades existenciais. Contudo, se fazemos isso é porque não apenas queremos cultivar a aparência juvenil, por meio de cirurgias plásticas e da medicina estética, mas também porque o código de experimentação que caracterizoua adolescência de outrora se disseminou para a idade adulta e para a terceira idade.

Constituiu-se assim uma efetiva adolescência sem fim na tradição ocidental, onde se busca pelo desejo a possibilidade de novos laços amorosos e novas modalidades de realização existencial.

Seria assim o imperativo de ser, custe o que custar, o que se impõe a nós como exigência ética na contemporaneidade de maneira incontornável, consubstanciado nas linhas de fuga do desejo e delineando a figura da adolescência infinita. Por isso mesmo, nas narrativas fundadoras da subjetividade contemporânea, é o mito de Hamlet (Shakespeare) que se impõe efetivamente, deslocando a figura de Édipo que dominou o imaginário ocidental na modernidade, disseminado que foi pela versão dele estabelecida pela psicanálise.

Joel Birman é psicanalista e professor titular do Instituto
de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Fonte: Revista Cult

O cuidar de si

por Vladimir Safatle

“A cura não apenas faculta amar e trabalhar, mas sugere que isso possa ser feito segundo uma nova forma de estar no mundo, uma forma que convida à criação e à invenção de outras maneiras de satisfação.”

Dificilmente poderíamos encontrar síntese melhor do que está em jogo na cura do sofrimento psíquico do que tal afirmação central no novo livro de Christian Dunker, Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica: Uma Arqueologia das Práticas de Cura, Psicoterapia e Tratamento (Annablume).

Partindo dela, Dunker propõe-se a traçar o lento quadro de constituição da cura do mal-estar, tal como ele aparece à consciência ocidental desde os gregos.

Andando na contramão do empreendimento de Michel Foucault, para quem as práticas de cuidado de si próprias ao mundo greco-romano não seriam comensuráveis com aquilo que encontramos nas modernas psicoterapias, em especial na psicanálise, Dunker quer expor relações de profunda solidariedade e pertencimento.

Sua larga experiência clínica permite-lhe reinscrever a psicanálise no interior de um conjunto de reflexões sobre a força produtiva e transformadora do poder que exercemos sobre nós mesmos ou que deixamos que outros exerçam sobre nós. Poder que, atualmente, se serve da “importância da autoridade pessoal do psicoterapeuta sobre o paciente” a fim de mobilizá-la para além de meros dispositivos de sugestão.

Que a tematização das estruturas do poder possa abrir “uma nova forma de estar no mundo”, eis algo que a guinada organicista da psiquiatria contemporânea faz questão de esquecer.

É preferível imaginar que nosso corpo vai mal a assumir que sofremos por não sermos capazes de redesenhar as engrenagens do poder que exercemos sobre nós mesmos. Ou seja, que sofremos por termos, digamos, uma má política de si.

Mas é para a urgência de tal reflexão que o robusto livro de Dunker acaba por nos levar. O que não poderia ser diferente para alguém que afirma ser o diagnóstico clínico “um diagnóstico das formas de relação do sujeito com o outro”.

Seu livro começa com a confrontação entre as duas vertentes da formação do Ocidente, a grega e a judaica, a respeito da experiência da dúvida de si, da dúvida a respeito de seu próprio lugar. Uma dúvida que expressa o caráter agonístico, conflitual do que se coloca para mim como destino.

Quem diz conflito fala necessariamente em política, em capacidade de negociação. Essa dupla política se organiza tendo em vista dois tipos possíveis de fracasso.

O herói grego (e Ulisses é aqui o maior exemplo) é assombrado pela possibilidade da “perda da alma”, do “excesso de indeterminação do espírito” que o faria duvidar do destino que ele sabe necessário. Por isso, ele vive a esconjurar tal indeterminação e a reafirmar obstinadamente seu destino.

Já o herói semita é aquele que precisa “confiar e agir sem dispor de todo o saber necessário para tal”, que deve aceitar viver com um nome impronunciável. Por isso, ele deve assumir a produtividade desse seu excesso de indeterminação.

Duas vias cruzadas que Dunker, com sua astúcia costumeira, não tem dificuldade em transformar em tendências internas às formas do adoecer psíquico. Fracassamos de duas formas: ou por mergulharmos em uma odisseia sem fim nem retorno, como um Ulisses sem Penélope, ou por perdermos a confiança no que é impronunciável, no que ainda não tem forma.

Entre essas duas possibilidades de fracasso, as práticas de cuidado de si herdadas pela psicanálise atuarão.

A partir desta célula motora, o livro de Dunker passará em revista vários momentos das práticas de cuidado de si (Montaigne com seus Ensaios, Descartes e suas Meditações, Hegel e a narratividade de sua Fenomenologia), até chegar à psicanálise.

Nesse trajeto impressionante, a capacidade de distinção e organização de Dunker leva o leitor a compreender como a psicanálise nunca poderia organizar-se a partir de um “conhece-te a ti mesmo”, mas sim de um “cuida de ti”.

Não exatamente um saber baseado no processo de decifração do inconsciente, mas a invenção de uma verdade resultante da capacidade de criar novas formas de vida.

Fonte: Revista Cult

Comédias românticas estragam a sua vida

Thiago Perin

Pesquisadores da Universidade de Heriot-Watt, na Escócia, constataram (em um trabalho bem divertido) que assistir a comédias românticas deixa a gente com expectativas irreais – e potencialmente perigosas – quantos aos relacionamentos da vida real.

Analisando 40 sucessos do gênero (como “Enquanto Você Dormia”, com o casalzinho Sandra Bullock e Bill Pullman, e “Mensagem para Você”, com Meg Ryan e Tom Hanks), eles isolaram alguns dos elementos mais perigosos das histórias: os conceitos de que casais se apaixonam instantaneamente; que, no final, o destino sempre une as pessoas que se amam; e que há apenas um par perfeito para cada um. Além disso, nos filmes as traições e mancadas são superadas com muito mais facilidade do que na vida real.

Identificado o inimigo, os especialistas colocaram cerca de 100 voluntários para assistir a “Escrito nas Estrelas” – aquele filme fofinho com John Cusack e Kate Beckinsale. Outros 100, enquanto isso, assistiam a um drama de David Lynch.

Em um questionário feito após a sessão, quem viu a comédia romântica demonstrou convicções muito mais fortes nos conceitos românticos, como destino, do que os outros. Inocentes. “Se você acha que é assim que as coisas funcionam, pode se preparar para uma decepção”, aconselha o líder do estudo, Bjarne Holmes.

Fonte: Superinteressante

P.S.: artigo em inglês do proprio Holmes sobre o assunto, aqui.

Dr. Kinsey

por Cleison Guimarães

Durante o período de férias, ou seja, durante uns momentos de ócio “criativo” onde você vê filmes, lê alguma coisa, dorme e nem se lembra da psicologia, sim, foi numa dessas que me deparei com uma matéria da Superinteressante falando sobre um tal de Dr. Kinsey e lendo a mesma eu lembrei que já tinha ouvido falar desse senhor. E aproveito o momento para falar sobre um pouco dele.

Alfred Kinsey nasceu em uma família super-religiosa nos EUA durante o século 20, onde era proibido o álcool, o fumo e as danças, e no meio desse ambiente de repressão que ele percebeu que sentia atração por garotas e garotas.

Com isso entrou na faculdade e todo o seu interesse foi voltado para entender a sexualidade humana. Ele queria saber o porquê do sexo ser um tabu até mesmo entre quatro paredes.

Kinsey investiu 30 anos da carreira acadêmica para provar que quando se fala em sexo, o normal e anormal seriam apenas convenções morais.

Foi durante seu período na Universidade de Indiana ministrando a disciplina de Higiene que ele deixou de lado as metáforas e explicações teóricas sobre a sexualidade e exibiu projeções com detalhes das genitálias e suas funções reprodutoras e sexuais.

Os alunos da disciplina responderam positivamente e convenceram Kinsey a aprofundar seus estudos. Com isso Kinsey empreendeu uma jornada não para “catalogar” as preferências sexuais das pessoas, e nem para dividir em heterossexual ou homossexual, mas sim para analisar como os indivíduos se comportavam durante o ato sexual e o que sentiam e etc. Mas muito da pesquisa mostrou certa catalogação.

Ele fez um treinamento rigoroso com sua equipe para poder coletar esses dados. Kinsey gravava as relações sexuais e fazia entrevistas com os interessados em participar da pesquisa, com isso ia coletando os dados necessários.

O resultado dessa pesquisa gerou dois livros O Comportamento Sexual do Homem e O Comportamento Sexual da Mulher .

A pesquisa de Alfred Kinsey gerou apoiadores e inimigos.

Os inimigos o viam como um homem que estava degrenindo os valores morais e tentando justificar sua bissexualidade.

Os apoiadores o viam como revolucionário, é alguém que estava mudando a historia de ciência sobre o sexo.

Beverly Whipple diz sobre Kinsey que “ele foi um pioneiro e nos ajudou a dar os primeiros passos em pesquisas sexuais”. O instituto criado por ele em 1947 continua fazendo pesquisas sobre a sexualidade humana, mas hoje o interesse não está em que as pessoas fazem, mas sim por que o fazem.

Eu o vejo como um cientista que ajudou muito na evolução da pesquisa sobre a sexualidade humana, sempre percebo que as pessoas que buscam mudar os valores de uma época sempre são vistas como pervertidas e são condenadas por isso.

O melhor exemplo para isso é Sigmund Freud, a sociedade entrou em colapso quando ele revelou que a sexualidade já está presente em uma criança e que sim uma criança sente prazer. Basta ser um humano para sentir desejo e prazer. Faz parte da vida isso, se não sentíssemos desejos a vida seria monótona e possivelmente o número de pessoas em depressão estaria maior.

Por fim, Kinsey morreu em 1956, nos EUA, e Freud morreu em 1939 em Londres, esses dois homens, separados pelo oceano, aparentemente nunca se encontraram e nunca tiveram contato com a obra de cada um, e mesmo assim contribuíram, cada um a sua maneira, muito para as ciências do sexo.

Então penso: como seria um encontro desses dois revolucionários?

 

Fonte: Superinteressante

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Cleison Guimarães é acadêmico de Psicologia. Está no facebook, no twitter e tem blogs. Visite seu blog, o Caleidoscópio, aqui. Siga-o no twitter, aqui.

Participação excessiva da mulher na vida do homem pode gerar impotência

Homens cujas namoradas se dão muito bem com seus amigos sofrem na cama, afirmam cientistas. Um estudo realizado pela Cornell University descobriu que homens mais velhos que passam a maior parte de suas vidas sociais ao lado das parceiras são mais propensos a sofrer de disfunção erétil.

O fenômeno foi apelidado de “parceira de intermediação” – quando a parceira está sempre entre o homem e seus amigos. Cerca de 25% dos homens pesquisados passam pelo problema.

“Homens que convivem com uma ‘parceira de intermediação’ nas relações amorosas são mais propensos a ter problemas para obter ou manter uma ereção e também costumam ter mais dificuldades em atingir o orgasmo durante o sexo”, comentou em entrevista ao “Daily Mail” Benjamin Cornwell, que realizou o estudo com Edward Laumann, da Universidade de Chicago.

Explica-se. Os cientistas dizem que esse tipo de relação míngua a sensação de autonomia e privacidade, que são centrais no conceito tradicional de masculinidade. Eles afirmaram que mulheres que tentam administrar a vida social do marido também podem vir a acumular problemas para si mesmas.

Os pesquisadores americanos também descobriram que homens que não têm muito tempo livre para passar com seus próprios amigos podem se sentir menos atraídos pelas parceiras. E disseram que não há nada de errado com a esposa fazer a maior parte da organização de suas atividades sociais conjuntas – já que as mulheres tendem a ser mais organizadas.

Mas eles afirmam que reduzir o contato com os amigos ao ponto de toda a socialização ser feita em conjunto pode ser perigoso. E sugerem que as mulheres devem encorajar seus maridos a passar mais tempo sozinhos com os amigos homens.

“A questão chave é se esse comportamento das mulheres reduz o contato dos homens com seus amigos enquanto aumenta o delas – por exemplo, se ela altera a programação dele ao ponto de seu contato com os amigos ocorrer cada vez mais no contexto de jantares com amigos – acrescentou o Professor Benjamin Cornwell, da Cornell University.

Os estudiosos analisaram dados do Projeto Nacional de Vida Social, Saúde e Envelhecimento, uma pesquisa de 2005 com três mil pessoas em Chicago, com idade entre 57 e 85 anos.

Edward Laumann, professor de sociologia da Universidade de Chicago, completou:

“O homem precisa ter alguém para conversar sobre as coisas que importam para ele – seja futebol, política, carro ou qualquer outro tema de seu interesse ou mesmo preocupação que ele queira dividir com os amigos”.

Fonte: Portal D24Am

As janelas das princesas que passam roupa

por Carol Bensimon

Outro dia a Júlia Schwarcz disse que os livros infantis costumam ter muito mais garotos protagonistas que garotas protagonistas. Quando li a coluna, me lembrei do trecho de um documentário, o do pôster simpático aí do lado, em que uma pessoa analisa ilustrações de livros infantis ao longo da história e chega à conclusão que os meninos são representados fazendo uma porção de coisas — jogando bola, correndo e etc — enquanto as meninas usualmente olham pela janela. Então eles mostram desenhos de meninas olhando pela janela, um atrás do outro, diferentes paisagens, diferentes janelas, a menina olhando, até que o espectador fique realmente deprimido.

Há um outro trecho de que me lembro muito bem, e vou descrevê-lo para depois partir para uma reflexão literária meio leviana. Vemos uma loja de brinquedos. Primeiro, visitamos a seção para meninos, depois a seção para meninas. Nas duas ocasiões, o vendedor está mostrando para a câmera as opções de brinquedo para cada um dos sexos. Na seção dos meninos, há dinossauros, caubóis, astronautas, super-heróis, piratas, carrinhos. É bem comum — diz o vendedor — que os meninos misturem todos esses universos na mesma brincadeira. Na seção das meninas, há basicamente princesas e cozinhas em miniatura. Com variações sobre o tema, claro. Do tipo barbies e pequenas tábuas de passar. A menina brinca — diz o vendedor — com um universo bastante limitado, que com frequência é uma representação do universo materno. Então ele mostra as fantasias. Para os meninos, há todas aquelas coisas que citei ali em cima, e mais uma infinidade de “papéis” possíveis. Para as meninas, princesas, princesas, princesas.

Não quero ser psicanalítica demais, até porque deve existir mais ou menos um milhão de estudos sobre isso, mas a figura da princesa é a figura mais passiva do mundo, esperando que o macho enfrente o dragão, parada, olhando, como a menina da janela.

Tenho certeza que isso faz com que existam muito menos mulheres artistas e, especificamente, muito menos mulheres escritoras. As grandes figuras femininas da arte, elas nunca se enquadraram com perfeição no papel que a sociedade lhes reservou, e isso frequentemente explica suas trajetórias. É incrível como, por outro lado, hoje você vê muito mais mulheres do que homens em eventos culturais de qualquer natureza, mas, de novo, elas estão lá como espectadoras. Passivas. Princesas.

No ano passado, quando o prêmio São Paulo de Literatura anunciou seus finalistas, todo mundo ficou surpreso com um fato: dos 10 escritores da categoria romance de estreia, 8 eram mulheres. O meio literário queria achar uma explicação para isso. Lembro que perguntaram minha opinião e eu disse: se a quantidade de mulheres na categoria estreante significa alguma coisa, a completa falta delas na categoria dos autores “consagrados” (10 homens) também significa alguma coisa. Alguma coisa muito mais importante, provavelmente. E a cereja no topo do bolo da história foi que um homem acabou vencendo a categoria de romance de estreia, arruinando completamente as teorias de quem via aquilo como uma grande conquista feminina.

Conclusão: dê uma nave para as meninas brincarem.

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Carol Bensimon nasceu em Porto Alegre, em 1982. Publicou Pó de parede em 2008, e no ano seguinte, a Companhia das Letras lançou seu primeiro romance, Sinuca embaixo d’água (finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura). Ela contribui para o blog com uma coluna quinzenal para o Blog da Companhia das Letras, aqui.

Fonte: aqui.

Dossiê – Perversão

Os perversos não são extra-humanos, mas demasiadamente humanos; definir a perversão é um paradoxo ético.

por Christian Ingo Lenz Dunker

A perversão é uma das três grandes estruturas da psicopatologia psicanalítica. Ao lado da psicose e da neurose, ela representa um tipo específico de subjetividade, desejo e fantasia. Comparativamente, seu diagnóstico é mais difícil e controverso: consideram-se a extensão e variedade de seus sintomas, bem como sua alta suscetibilidade à dimensão política. Nas perversões podemos incluir aproximativamente três subgrupos: as perversões sexuais, as personalidades antissociais e os tipos impulsivos. Essa subdivisão é problemática e apenas descritiva, pois cruza categorias originadas em diferentes tradições clínicas.

Devemos distinguir uma perversão ordinária de uma perversão extraordinária, representada pelos “tipos concentrados” com os quais a perversão foi historicamente associada, para, em seguida, ser excluída, silenciada e expulsa da condição humana. Aquela que seria a forma mais forte de perversão, como confronto e desafio à lei, é, na verdade, expressão de um tipo coletivo de exagero da lei, baseado na atração pela forma, desligada e deslocada de seu conteúdo.

“Perversão”, assim, seria o nome para o que nos desperta indignação. Mas, porque o estado social “normal” não representa necessariamente o bem ético, torna-se difícil pensar a perversão de modo simples. A anomalia que nega a norma pode ser um desvio progressivo, útil ou benéfico. Além disso, mesmo a dissociação entre a norma e seu oposto, entre real e ideal, entre o bem e o mal, é justamente uma das características da perversão.

Tipologia da perversão

Isso posto, há três famílias principais da perversão. A primeira refere-se ao exagero ou à diminuição de algo, que, sob justa medida, seria tolerável e até mesmo desejável. O perverso, assim, estereotipa um comportamento, fixa-se em um modo de estar com o outro e de orientar sua satisfação. Tome-se o exemplo de um sujeito que, para encontrar satisfação sexual, deve empregar adereços como calcinhas, vestir-se com roupas do sexo oposto, admirar partes específicas do corpo do parceiro ou manipulá-las de modo bizarro. Tudo isso, sem “exagero”, seria parte admissível de um encontro sexual, mas, quando sua presença torna-se coercitiva, necessária e condicional, percebemos que há uma espécie de excesso. A parte toma conta do todo.

A segunda família de perversões decorre da idéia de desvio. Trata-se aqui da metáfora da vida como um caminho, no qual o perverso “toma um atalho” ou elege para si “outra via”. Ele se desgarra dos outros, torna-se alguém fora da ordem, fora do lugar adequado. Curiosamente, essa negação da “norma” funciona como reafirmação de sua força. Se a primeira perversão é definida pelo traço de exagero, a ideia central do segundo tipo é a de deslocamento, inversão e dissociação.

A terceira classe de perversão é formada pelos que marcam seu compromisso com a transgressão, com a violação da lei, da moral ou dos costumes. Essa transgressão não é efeito secundário, mas decorre da identificação do sujeito com a lei. Alude-se aqui à lei materna (em oposição à lei paterna) para designar essa relação de passividade radical e de disposição soberana sobre o corpo do outro. Apesar da extrema variedade histórica e antropológica, há duas maneiras básicas de perversão da lei: afirmá-la por meio de uma negação ou negá-la por meio de uma afirmação.

Perversão e lei

No primeiro caso, a lei está escrita em alguma parte, intérpretes confiáveis e executores fiéis. Dessa perspectiva, exagera-se o caráter formal da lei, de maneira que sua execução deixe de aparecer como efeito de agentes empíricos dotados de sensibilidade. Ou seja, cria-se uma exceção à lei dentro da lei. Não importa se o modo de relação com o objeto é contrário à lei social instituída (como a pedofilia ou o assassinato do parceiro sexual); se ele é indiferente a essa lei (como o sujeito que obrigatoriamente deve “tatuar” sua parceira com uma caneta Bic durante o intercurso sexual para encontrar orgasmo); ou se ele é parasitário da lei socialmente instituída (como no filme O Cheiro do Ralo, no qual o fetiche do cheiro se especifica como traço adicional nas relações de compra e venda de objetos). O importante é que, do ponto de vista do sujeito, afirma-se a lei para negá-la.

A segunda forma de perversão da lei aparece quando o sujeito nega a lei para afirmá-la em outro nível. A satisfação não decorre de uma “falsa submissão a uma falsa lei”, mas da elevação do sujeito à condição de autor da lei.Esse é o caso dos que se identificam com o objeto para causar angústia no outro, ou seja, para dividir o outro e assim fugir à sua própria divisão. São as chamadas personalidades psicopáticas, hoje personalidades antissociais, nas quais predomina o sadismo: nego a lei socialmente compartilhada para afirmar uma lei maior, cuja enunciação está em minhas mãos.

A questão se complica se observamos que a lei considerada como fato positivo para a definição de perversão não é apenas a lei como ordenamento jurídico, nem a lei como conjunto de costumes, mas a lei que, a cada momento, é a pré-condição que orienta nossa escolhas, juízos e desejos. Mesmo que ela não esteja escrita nem encontre corpo em um código formal ou informal, essa lei está pressuposta a cada vez que agimos. O problema da perversão torna-se mais interessante se observarmos que a lei que orienta a vida desejante do sujeito, a partir de seu inconsciente, não é outra que uma versão da lei social corrente, institutiva das relações de autoridade e pertinência, de ordem e de poder, de família e de Estado. Uma é versão da outra, uma père-version (versão do pai) como diria Lacan (psicanalista francês, 1901-1981).

A matriz das perversões

A psicanálise chama de supereu essa lei interna ou essa voz que interdita certos tipos de satisfação, obrigando a outros. O supereu é a matriz ordinária de nossas perversões particulares e, ao mesmo tempo, a língua na qual expressamos e somos expressos pela lei social. Segundo essa tese, nossa consciência crítica, tida por muitos como a maior realização da razão humana, é ao mesmo tempo um olhar no qual nos aprisionamos, a voz do exagero e engrandecimento (das exigências, dos ideais e das expectativas normativas) e o núcleo de nossa satisfação e de nossa culpa em transgredir.

Por exemplo, vibrar em êxtase vendo um formigueiro pegar fogo não é um ato ilegal, mas sugere um tipo de gozo associado com a perversão. Qualquer criança explora esse tipo de satisfação, até que seus pais a convidem à seguinte “inversão de perspectiva”: “Imagine se você fosse uma formiga? Iria gostar de ver a casa pegar fogo?”. Esse tipo de inversão faz com que abandonemos uma gramática da satisfação – nesse caso o sadomasoquismo – em prol de outra. Cada um de nós possui uma história composta de gramáticas como estas: exibicionismo e voyeurismo, heterossexualidade e homossexualidade, feminilidade e masculinidade. Há gramáticas pulsionais mais simples, tais como ingerir e expelir, dar e receber, bater e apanhar, e há gramáticas mais complexas e mais abrangentes tais como ser e ter ou aceitar ou recusar.

Contudo, a tese psicanalítica é a de que a sexualidade infantil possui a característica de ser perversa, por explorar, exagerar e transgredir os diferentes modos de satisfação, e de ser polimorfa, por admitir muitas formas, plásticas e mutáveis.  A perversão no adulto diferencia-se disso por seu caráter de fixidez (uniforme) e pela função subjetiva de desautorização da lei. Assim, a perversão não é só uma questão de infração procedimental da lei, mas refere-se ao tipo de intenção (ou de desejo), ao modo como nos colocamos, e situamos o outro, diante do que fazemos.

É nesse ponto que a definição popular de perversão argumentará que ela ocorre justamente por falta de sentimentos morais como a culpa, a vergonha e o nojo. Daí a ausência de arrependimento, de reparação e de consideração pelo outro que historicamente fez dos perversos os ícones da maldade. Eles não apenas praticam o mal, mas, principalmente, gostam de fazer mal aos outros, especialmente quando se comprazem em causar angústia, terror e tortura. Ora, o que acontece aqui não é a ausência de supereu, que poderia ser curada com a administração massiva da lei,  mas a construção de uma espécie de supereu ampliado, como se algumas de suas funções fossem experienciadas, de modo deslocado, fora do sujeito, ou seja, no seu infeliz e circunstancial parceiro.

Perversão e experiência comum

Os mais diferentes e insólitos tipos de satisfação estão presentes em todos nós, de forma atenuada, disfarçada ou restrita. Não é pela ausência ou presença dessas tendências que podemos definir a perversão. Os perversos não são extra-humanos, mas demasiadamente humanos. O problema para definir a perversão, nesse sentido, é que temos de resolver o chamado paradoxo ético do ato. Não basta saber se ele é conforme ou contrário à lei, mas saber qual tipo de experiência ele produz em quem o realiza e o tipo de posição que ele confere ao outro.

Há vários exemplos de como o gozo, ou seja, o tipo de satisfação ordenado pelo supereu constitui uma perversão particular e ao mesmo tempo um fator político incontornável. Há, por exemplo, um fascínio espontâneo por aquele que se coloca no lugar de supereu.  A atração exercida por líderes e “celebridades”, assim como pelos sistemas totalitários, sejam eles nações, instituições, corporações ou mesmo empresas e grupos, baseia-se neste sentimento de que eles expressam em exterioridade nossa própria relação perversa com a lei. Diante disso, estaremos voluntariamente dispostos a servir como instrumento do gozo do outro, posto que ele é o meio pelo qual posso ter acesso deslocado à minha própria fantasia, exagerada pelo fato de ser vivida em massa. Isso tudo sem o ônus da culpa e do risco que estariam em jogo se eu me dispusesse a realizá-la por meios próprios.

A chave para entender esse tipo de perversão ordinária está na dissociação e na simplificação produzidas pela montagem da fantasia. Dissociação e simplificação encontradas na principal expressão sintomática da perversão, a saber, o fetiche, ou seja, esta propriedade ou esta função que permite transformar outro em objeto inanimado (meio de gozo para meus fins) e reversamente o objeto em outro animado (fim para o qual todos os meios se justificam). Em acordo com a regra perversa da inversão, o fetiche é a condição básica a que todo objeto deve atender para tonar-se viável no universo de consumo. Para funcionar como tal, ele deve conseguir dissociar seu potencial de ilusão, por um lado, de seu efeito de decepção, por outro. Não é um acaso que Karl Marx (1818-1883) tenha descrito a economia capitalista baseando-se no fetiche da mercadoria.

Outro exemplo de montagem perversa são os sistemas e dispositivos burocráticos responsáveis pela judicialização da vida cotidiana. A burocracia é uma forma regrada e metódica de produzir anonimato e álibi para nosso desejo e, portanto, para confirmar a máxima perversa de que “o outro deseja, mas segundo a lei que eu determino”. Nessa medida, há tanta perversão nos excessos alimentares – no bulímico e no anoréxico – quanto no discurso de vigilância sanitária sobre nossa alimentação, para não falar do exibicionismo de uma infância sexualizada pela moda, o voyeurismo de nossos reality shows, a estética pornográfica de nossas produções culturais, o sadismo de nossos programas de violência ao vivo, o masoquismo do trabalho e da “vida corporativa”, o descompromisso “líquido” de nossa vida amorosa, a cultura da drogadição (legal e ilegal), e tantos fenômenos que costumam ser reunidos sob a hipótese da perversão generalizada. Ao contrário da perversão clássica, a perversão ordinária de nossos tempos é uma perversão flexível, silenciosa e pragmática. Ela não se mostra como experiência “fora da lei”, que convidaria a ajustar as contas com os limites de nossa própria liberdade, mas, ao contrário, é mais perniciosa, pois reafirma nossa realidade assim como ela é.

As articulações que constituem a perversão, tais como a transgressão, a exageração e a dissociação, tornaram-se aspectos decisivos de nosso laço social ordinário.  Bem-vindos à perversão nossa de cada dia.

Fonte: Revista Cult

A construção subjetiva infantil segundo Melanie Klein

Como ocorre o desenvolvimento infantil segundo Melanie Klein? Na psicanálise construída por Melanie Klein encontramos o conceito de posição, tal conceito remete a forma de como se constitui a subjetividade do bebê, e para Klein existem duas formas de constituição da subjetividade ou duas posições, que acontecem de forma processual. Tais posições podem ser denominadas de posição esquizo-paranóide e posição depressiva.

A posição esquizo-paranóide inicia no nascimento até os seis meses de idade. Na posição esquizo-paranóide o desenvolvimento do eu é determinado pelos processos de introjeção e projeção. A primeira relação objetal do bebê ocorre com o chamado seio amado e odiado – seio bom ou seio mau. Os impulsos destrutivos e a angústia persecutória encontram-se no seu apogeu, assim como os processos de divisão, onipotência, idealização, negação e controle dos objetos internos e externos.

Segundo Melanie Klein a defesa primordial é a clivagem, o seio é o objeto primordial e será dividido em seio bom e seio mau, ou num bom objeto que o bebê possui e num mau objeto que está ausente, como mãe nunca está sempre presente na vida bebê para amamentá-lo ela se torna ausente e o bebê com isso inaugura o processo de clivagem em sua subjetividade. Ele percebe o seio como “bom” porque o amamenta e como “mau” porque se ausenta.

Como se percebeu, o bebê nessa fase se relaciona com objetos parciais, o seio bom e mau, um objeto ideal e outro persecutório. Porém, o objeto mau é projetado para fora do bebê como sendo perseguidores e destruidores do objeto bom. Nessa fase vemos a existência de uma angústia persecutória, então a meta da criança nessa fase é de possuir o objeto bom e introjetá-lo e também de projetar o objeto mau para fora e assim evitar os impulsos destrutivos.

Num segundo momento, se desenvolve a posição depressiva, ela inicia aos seis meses de idade, nesse momento a relação do bebê com o mundo externo se torna mais diferenciada, aumentando sua capacidade de expressar emoções de se comunicar com as outras pessoas.

Nesse momento, o bebê reconhece a mãe como um único objeto, ou seja, o bebê começa a reconhecer a mãe como uma pessoa total com existência própria e independente, fonte de experiências boas e más. A criança compreende pouco a pouco que é ela quem ama e odeia a mesma pessoa, sua mãe, e assim inaugura a experiência do chamado sentimento de ambivalência.

Agora o bebê percebe que antes temia a destruição do seu objeto amado por perseguidores e agora ele teme que essa sua agressão possa destruir o objeto ambivalentemente amado e odiado. Sua angústia deixa de ser paranóide pra ser depressiva. E assim começa a se originar sentimentos de culpa e luto, como afirmar Melanie Klein.

Com isso se inicia um processo de reparação dessa relação objetal ambivalente. É com esse processo de reparação desse luto e culpa é que será a melhor saída da posição depressiva. Esse processo se dá com a aceitação da perda de parte do objeto, ocorrendo essa condição o bebê poderá restaurá o objeto amado, porque somente assim ele poderá reparar o desastre ocorrido e assim preservar o objeto amado de outros ataques dos objetos maus, esse processo de superação e reparação, segundo Melanie Klein, é o chamado de trabalho de luto.

Através da aceitação da perda é que o bebê passa a trabalhar saudavelmente a construção de sua subjetividade.

E de acordo com Melanie Klein, nós sempre estaremos vivendo as posições esquizo-paranóide e depressiva ao decorrer de nossas vidas, sempre de forma alternada, segundo a psicanálise kleiniana, essas são as únicas formas de se viver a angustiante e terrível vida humana.

REFERENCIAL BIBLIOGRAFICO

 

COSTA, Teresinha. Psicanálise com crianças. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2007.

NASIO, J. –D. Introdução às Obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto, Lacan. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1995.

Cleison Guimarães é aluno do 5º período da graduação do curso de Psicologia do Centro Universitário do Norte – UNINORTE. Além de estudante é escritor iniciante. Ele mantém um blog – cleisonguimaraes.blogspot.com. No seu blog você pode encontrar contos de sua autoria, dicas de música e de outros escritores, pensamentos sobre o cotidiano e relatos de episódios de sua vida. Você também pode encontrá-lo no Twitter – twitter.com/cleisonguiraes. Ele também é colunista da revista on-line Gosto de Ler, onde ele escreve contos e indica leituras de romances, nesse link você poderá ler suas matérias: http://www.gostodeler.com.br/curriculo/464/cleison_guimaraes.html